Ontem foi um dia longo. Você não veio me ver. Olho para fora do quarto, para fora de mim. Agora, eu e esse quarto somos um só corpo. Não sei onde eu termino ou começo. Lá fora há um farfalhar mudo. Uma árvore espia por um pedacinho de janela, um amarelado desbotado de sol entra cortando o cheiro estranho que não sei se é meu ou das paredes, dos remédios ou dos lençóis.
A última vez que você veio – quando foi mesmo? Me olhou com estranha surdez. O que houve? Você vinha me ver todas as tardes. Comecei a fazer pequenas dobras no lençol para contar os dias de tua ausência. Trocaram o lençol e eu perdi a conta. Faz algum tempo, que mais dias começaram a se somar entre as suas visitas. Por que você está vindo menos? É porque lhe disseram que estou morrendo? Mas você também está. Cada dia um pouco. Todos nós estamos morrendo, quem disse que eu vou antes de você? Mas todos nós (ainda) estamos vivendo e isso é o que vale. Vale tanto! Vale tudo!
Queria falar sobre essas e tantas outras coisas; coisas que ainda são do viver. Venha me ver, não falaremos de morte, prometo. Até porque, quando quer, ela vem sem cerimônias.
Hoje me fiz bela, pensei coisas lindas e leves, afastei todo pensamento que pudesse me enfeiar. Mas você não veio. Esperei pacientemente meus olhos no teto e, de tanto esperar, apareceu um buraquinho, não sei se preto ou azul. Avisei a equipe que entra e sai do meu quarto, sobre o tal buraquinho. Não me deram ouvidos. Sempre achei estranha essa expressão: dar ouvidos. Não quero os ouvidos de ninguém, quero também todo o resto que vem junto com os ouvidos. Você consegue ouvir só com os ouvidos? Quando escuto algo que me deixa feliz, tenho cócegas na barriga, como mil borboletas batendo asas. Quando escuto algo que me entristece meu estômago se contorce como uma uva passa. Veja! Não é possível escutar só “dando os ouvidos”. É preciso dar-se todo. Escutar é um encontro de almas. E ali onde minha alma encontra outra alma, as palavras não precisam ser ditas para fazer sentido. É preciso escutar silêncios.
Sinto-me só. Venha me ver. Vamos falar da vida. Sim, da vida. Vamos afugentar seus medos e os meus contando piadas; vamos rir das bobagens que já fizemos; vamos ler poesia. Quando você vier, me traga aquele livro da Clarice que ficou na cabeceira da cama; traga também os fones de ouvido, estão na estante da sala, eu acho! Lembre de trazer alguns CDs, aqueles que escutamos tantas vezes em intermináveis noites. Tenho saudades da voz de Billie Holiday.
Venha, falaremos da vida. Já que a morte nos espia desde que nascemos. E a vida, essa sim, é o que fazemos.
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